jp simões - 1970
A minha geração já se calou, já se perdeu, já amuou,
Já se cansou, desapareceu, ou então casou, ou então mudou,
Ou então morreu; já se acabou.
A minha geração de hedonistas e de ateus, de anti-clubistas,
De anarquistas, deprimidos e de artistas, e de autistas
Estatelou-se docemente contra o céu.
A minha geração ironizou o coração, alimentou a confusão,
Brincou às mil revoluções amando gestos e protestos e canções,
Pelo seu estilo controverso.
A minha geração só se comove com excessos, com hecatombes,
Com acessos de bruta cólera, de mortes, de misérias, de mentiras,
De reflexos da sua funda castração.
A minha geração é a herdeira do silêncio,
Dos grandes paizinhos do céu,
Da indecência, do abuso,
E um belo dia esqueceu tudo e fez-se à vida
Na cegueira do comércio.
A minha geração é toda a minha solidão, é flor de ausência, sonho vão,
Aparição, presságio, fogo de artifício, toda vício, toda boca
E pouca coisa na mão.
Vai minha geração, ergue a cabeça e solta os teus filhos no esplendor
Do lixo e do descuido, deixa-te ir enquanto o sabor acre da desistência vai
Corroendo a doçura da sua infância.
Vai minha geração, reage, diz que não é nada assim,
Que é um lamentável engano, erro tipográfico, estatística imprecisa, puro
Preconceito, que o teu único defeito é ter demasiadas
Qualidades e tropeçar nelas.
Vai minha geração, explica bem alto a toda a gente que és por demais
Inteligente para sujar as mãos neste velho processo, triste traste de Deus,
De fingir que o nosso destino é ser um bocadinho melhores do que antes.
Vai minha geração, nasceste cansada, mimada, doente por tudo e por nada,
Com medo de ser inventada, o que é que te falta agora que não te falta nada?
Poderá uma pobre canção contribuir para a tua regeneração
Ou só te resta morrer desintegrada?
Mas, minha geração, valeu a trapaça, até teve graça,
Tanta conversa, tanta utopia tonta, tanto copo,
E a comida estava óptima! O que vamos fazer?
jp simões - fábula bêbada
Só quem saltasse o grande muro poderia ver no escuro o puro amor
E a cidade
Que venera novidades
Pôs-se aos saltos por aí
E foi tropeçar
Bêbada
No seu bordel
Só quem saltasse o puro escuro poderia ver no muro o grande amor
E a cidade
Que venera novidades
Pôs-se às cegas por aí
E foi descambar
Bêbada
Na contramão
Só quem pudesse amar um muro ia andar assim no escuro a saltar
E a cidade
Que venera novidades
Beijou prédios, vedações,
Bancos, transacções,
Bêbada
De construcções
Só quem amasse o escuro puro poderia ter um muro para saltar
E a cidade
Que venera novidades
Ergueu novas catedrais
Naves espaciais
Bêbada
De tanto céu
Só quem amasse o puro salto lá do muro escuro e alto ia amar
E a cidade
Que venera novidades
Nunca pode resistir
Teve de explodir
Bêbada
Até ao fim
jp simões - a pele que há em mim
Quando o dia entardeceu e o teu corpo tocou
Num recanto do meu uma dança acordou
E o sol apareceu de gigante ficou
Num instante apagou o sereno do céu
E a calma a aguardar lugar em mim
O desejo a contar segundo o fim.
Foi num ar que te deu e o teu canto mudou
E o teu corpo do meu uma trança arrancou
O sangue arrefeceu e o meu pé aterrou
Minha voz sussurrou ?o meu sonho morreu?
Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada.
Dá-me o quarto vazio da minha casa
Vou deixar-te no fio da tua fala.
Sobre a pele que há em mim tu não sabes nada.
Quando o amor se acabou e o meu corpo esqueceu
O caminho onde andou nos recantos do teu
E o luar se apagou e a noite emudeceu
O frio fundo do céu foi descendo e ficou
Mas a mágoa não mora mais em mim
Já passou, desgastei, para lá do fim
Ã? preciso partir é o preço do amor
Para voltar a viver já nem sinto o sabor
A suor e pavor do teu colo a ferver
Do teu sangue de flor já não quero saber
Dá-me o mar, o meu rio, a minha estrada.
O meu barco vazio na madrugada
Vou deixar-te no frio da tua fala.
Na vertigem da voz quando enfim se cala.
jp simões - inquietação
A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes
São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Ensinas-me fazer tantas perguntas
Na volta das respostas que eu trazia
Quantas promessas eu faria
Se as cumprisse todas juntas
Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco para chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho
Cá dentro inqueitação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
Qualquer coisa que eu devia perceber
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Cá dentro inqueitação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Mas sei
É que não sei ainda
Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer
Qualquer coisa que eu devia resolver
Porquê, não sei
Mas sei
Que essa coisa é que é linda.
jp simões - música impopular
Ana, e um fim-de-semana
Ã? devassa Ana
Meu deboche vão e bão.
Cama é filosofia
Balde de água fria
Para quem fica só.
Oh
Hoje fujo para longe das festas
Ansiolíticos, tv, cinema, jornal,
E vivo bem menos mal.
Ai hoje, não suporto a primavera
Tranco-me em casa
Já vi que o amor se cansa
Logo que se acaba a dança.
Ana, a semana inteira,
Doce companheira
Minha solidão.
Fomos perdendo a cabeça
Numa vida avessa à nossa paixão.
Ai outra vez não.
Hoje fujo pra longe de casa
Embriagado de tudo o que é belo e fugaz
Tudo o que a noite faz e desfaz
Hoje, não suporto companhia
Por mais que um dia já vi
Que o amor se cansa
Logo que se acaba a dança
Hoje nem sei bem que dia é hoje
Não me conformo
Hei-de ter oitenta anos
E continuar a fazer grandes planos
Hoje, estou-me nas tintas pra hoje
Hoje, que dia estúpido
Pois vi que o amor se cansa
Logo que se acaba a dança.
jp simões - o vestido vermelho
Lá vai ele embora,
com o seu cachecol
eu sei bem que agora
tem outro amor
um tal de jogador
de futebol.
Da casa do lado
ouve-se o relato
o clamor do estádio
onde ele extravasa
e eu estendo-me em casa
tiro os sapatos
pinto o cabelo
rio-me ao espelho
ponho o vestido vermelho
à espera
de um golo
a nosso favor.
Cresce o jogo, avança
correm os heróis
para aguentar a dança
das frustrações
das multidões
de tudo o que mói
não digo o contrário
finjo acreditar
e estico o salário
compro o bilhete
para o camarote
faço o jantar
pinto o cabelo
rio-me ao espelho
ponho o vestido vermelho
à espera
de um golo
a nosso favor.
jp simões - só mais um samba
Hoje ficas por casa
quase nem ousas lembrar,
mas a lua ainda te chama
como dantes, para dançar.
Já cruzaste oceanos
por caprichos de paixão,
foste deusa, foste bicho,
viste a festa, a fome, o fundo
do país de carnaval,
tira a máscara dos anos
e vem dançar
só mais um samba,
só mais um samba...
Tantas águas passadas
pesam tanto quanto o mar,
mas o tempo ainda reclama
outro tanto navegar.
São novíssimos dias,
novas vozes a cantar,
quero ver-te sem tristeza,
como quando eras nobreza
no país do carnaval,
põe a máscara do sonho
e vem dançar
só mais um samba,
só mais um samba,
Só mais um samba,
só para lembrar,
só mais um samba
que eu quero voltar
ao começo da nossa
canção de amor
que nunca vai acabar.
jp simões - tango do antigamente
Eu nunca suspirei
Nunca te adorei
Eu nunca quis saber
Eu nunca te quis bem
Eu fingi ter prazer, gritei, pus-me a gemer
Mas nunca desliguei pensei sempre em sair
Fugir, ir-me encontrar com estranhos nalgum bar
Gozar, rir-me de ti.
Agora ele:
Eu nunca suspirei
Nunca te adorei
Eu nunca quis saber
Eu nunca te quis bem
Mais que a um saco de prazer
Um bicho de salão com modos de pavão.
Pensei em passear-te por galerias de arte
Na trela como um cão.
Um vício um precipício - cio.
Foi tanta porcaria tornou-se natural
E por toda a cidade fez-se prática normal
Falar dos velhos tempos com grande exaltação
Encher de fancarias a má decoração
Tantos verões de amor azul como na televisão
Eu era uma princesa actriz.
Eu era um rei feliz.
Mente ao antigamente mente
Contente e constantemente
Como antigamente.