MELHORES MÚSICAS / MAIS TOCADAS
jayme caetano braun - hermano
Seu nome - nunca se soube,
nem ele mesmo sabia.
Numa noite muito fria
deu ô de casa na estância.
Vinha de longa distância
dos fundos da noite grande,
mas nos galpões do Rio Grande
isso tem pouca importância.
Ninguém lhe perguntou nome
nem lugar de procedência
que vinha de outra querência
se via no sufragante,
um buenas noites vibrante
de campeira fidalguia
e a galponeira franquia:
- ... Apeie... e chegue pra diante!
O chapéu com barbicacho,
negra e comprida melena,
pele queimada, morena
sem luxos na vestimenta,
bombacha de brim - cinzenta,
adaga e faca à cintura
e um olhar misto ternura
com lampejos de tormenta.
Mi nombre es Hermano, hermanos
disse - enquanto chimarreava
à peonada que escutava
mui atenta - por sinal,
e no mesmo tom casual,
palmeando a cuia de mate,
afirmou como arremate:
- Soy de la banda Oriental!
Desde essa noite o Hermano
ficou na estância - ajudando,
que o índio que anda cruzando
não se ajusta como peão,
vai ficando no galpão
- a velha casa reiúna -
onde os párias sem fortuna
buscam calor de fogão.
Sempre alegre e prestativo,
naquele meio dialeto,
era um gaúcho completo,
de ação pronta e destorcida,
demonstrando em qualquer lida
que era desses campechanos
que já nasceram vaqueanos
dos mil atalhos da vida.
Depois que se enforquilhava
no seu basto castelhano
nem o bagual mais tirano
sacava o índio dali.
Aos gritos de ibi-bi-bi,
ia surrando cruzado
pulando mais que dourado
nas enchentes do Ibicuí!
Cantava uma flor de truco,
à velha moda gaúcha
e num jardeio - qüe pucha,
sempre saía primeiro,
corredor mui tarimbeiro,
desses com sete sentidos
que até parecem nascidos
nas cruzes do parelheiro.
Laçava... e como laçava,
de a pé como de a cavalo,
tanto fazia no pealo,
ser sobre-lombo ou cucharra;
companheiro numa farra
dos que não refugam nada
e que mão aveludada
pra pontear uma guitarra.
Quando cantava se via
naquele olhar machucado
o pensamento empacado
nalguma reminiscência,
talvez a velha querência
longe na barra pampeana...
talvez alguma paisana
desgarronada na ausência...
Numa milonga macia,
numa cifra - num estilo
nunca se viu como aquilo
tamanha fidelidade,
ora olfateando saudade
numa nostalgia langue;
ora farejando sangue
num berro de liberdade.
Quando os dedos se perdiam
entre a quarta e a bordona
pareciam vir à tona
barbarescsa ressonâncias,
clarins furando distâncias
num último chamamento
e laços cortando ventos
no amanhecer das estâncias.
Depois amaciava o tranco
com patas aveludadas
e evocava madrugadas
com luas e meias-luas;
pôr-de-sóis nas pampas nuas
com romances proibidos
nos pelegos estendidos
para divãs das chiruas!
Sábado encilhava o baio
rumbeando aos ranchos da estrada,
beber ternura comprada,
onde os párias vão beber,
pois nesse meio viver,
o índio sem parador,
nunca encontra o bebedor
da sanga do bem querer.
Foi num Domingo de tarde,
ao retornar de uma andança,
a noite caía mansa
e o paisano vinha sério,
o pensamento gaudério
perdido longe... distante,
sem saber que, logo adiante,
ia enfrentar o mistério.
Quando embicava no passo
que faz fundo na invernada,
já na boca da picada,
o baio parou-se um gato,
bufou com espalhafato,
como prevendo tragédia,
o índio bancou na rédea,
já meio dentro do mato.
Ouviu um - morre bandido
dos covardes, de emboscada,
já na primeira trovoada
planchou-se o baio cabano.
Baleado embora, o Hermano,
ao se apartar do lombilho
vinha puxando gatilho
dum trinta e oito orelhano.
Seis tiros dados no rumo
e um alarido de morte.
Depois, a sangueira forte
e um frio que vinha do miolo
mas o índio era crioulo,
teve um sorriso esquisito:
- não ia morrer solito,
pra o taura, é sempre um consolo.
E ajoelhado, atrás do baio,
parceiro de mil jornadas,
já de pupilas vidradas
pela morte repentina,
passou-lhe a mão pela crina,
como quem nana criança
e um arrepio de vingança
escureceu-lhe a retina.
Com três ou quatro balaços
bordando a pele morena,
nem ouvia a cantinela
e o fogonear dos balaços,
meio de arrasto - c'os braços,
rumbeou para o tiroteio:
- galo fino - no careio,
coloreando de puaços...
Era um gaúcho Oriental
e um Oriental não recua,
honra a tradição charrua
e nem a morte o abala,
no próprio sangue resvala
mas segue no mesmo tranco,
agora, de ferro-branco,
porque jã não tem mais bala.
Sente que a vista falta
e uma bárbara dormência,
mas resta-lhe uma incumbência
nessa noite de Domingo,
se entrevera e - no respingo,
mete a adaga em carne humana,
gritando em voz insana:
- esta les doy por mi pingo!
Com vinte e tantos balaços,
escoriações e facadas,
as roupas esburacadas,
já cego - e peleando aos gritos,
como a confirmar os gritos
dalgum Confúncio campeiro:
- Covarde morre ligeiro,
o taura, morre aos pouquitos.
Três mortos - mais o Hermano
e o baio - morto encilhado,
não foi identificado
nem um só daquele trio,
o restante, se sumiu,
na imensidade campeira,
deixando apenas sangüeira
e o choro do vento frio.
Nunca se soube o motivo
daquela barbaridade,
nem a própria autoridade
nem gente da vizinhança.
Foi com certeza, vingança,
feita por gente mandada.
Restam na velha picada
quatro cruzes por lembrança.
Seus nomes nunca se soube,
três cruzes sem inscrição
defronte - noutro munchão,
uma cruz tem nome: Hermano.
Descansa nela o paisano
que usava melena preta,
um poncho azul de baeta,
montava um baio cabano.
E lá está a cruz de pau ferro
palanqueando o castelhano,
último adeus do Hermano,
na tarde triste e cinzenta,
ao ver a cruz - representa
que a gente vê - na lonjura,
seu olhar, misto ternura,
com lampejos dde tormenta.
jayme caetano braun - gineteando
A la putcha meu patrício,
Como é lindo e perigoso
Quando um bagual baixa o toso
Corcoveando num lançante
Sabendo que àquele instante
Só nos separam da morte
As rédeas e a cincha forte
Feita de couro e barbante!
E como é lindo cruzar
Enforquilhado nos bastos,
Riscando o lombo dos pastos
O mesmo que uma centelha
Ou na várzea desparelha
Pro índio sair passeando
Depois de pisar na orelha!
Quando piá, foi o prazer,
Que nunca troquei por outro
Saltar no lombo dum potro
Quando a manada saía
- Artes que a gente fazia,
Se acaso estava solito,
E depois pregava o grito
Quando o bagual se perdia!
Terneiro de marcação,
Ao se levantar do pialo,
Já me levava a cavalo
Ali, bem sobre as cadeira.
Les digo, é uma brincadeira
Que a gente faz sem pensar,
Mas é parte regular
Da aprendizagem campeira!
E cheguei até a pensar,
Pobre guri sem estudo,
No lombo dum colmilhudo
Mais quente que amor de prima,
Que Deus não fez melhor rima
Do que as esporas cantando,
Um redomão corcoveando
E um índio grudado em cima!
Cresci sabendo que o chucro
Exige muito cuidado
Mas que o cavalo aporreado
Exige cuidado e meio.
Levei algum tombo feio
De grande e até de pequeno
Mas cavalo que eu enfreno
Dá pra dançar num rodeio!
Mas pra aquele que não sabe
Ensino como se faz,
- Ã? a moda do capataz
Da estância onde fui guri -
E posso mostrar aqui,
Em linguagem resumida,
As passagens dessa lida
Da forma que eu aprendi.
Me ajuda, amigo parceiro,
Pega um laço, eu pego outro,
Laça de vereda o potro
Bem ali contra o gargalo
Deixa que corra que eu pialo
E enforca, que se boleia,
E antes mesmo da maneia
Mete o buçal no cavalo!
Depois enfia o boçal,
Porque o bagual não se amima,
Que a língua fique por cima
E bem cuidado o arrocho.
E se for de queixo roxo,
Ã? bom dar algum tirão
Que já levante do chão
Meio tonto e garrão frouxo!
Deixa, antes disso, o cabresto
Apresilhado no laço,
Pra evitar um manotaço
Se o bagual le toma a frente
- Nunca é demais ser prudente
Lidando com animal.
Se golpear, não puxe mal,
Pra evitar que se arrebente.
E depois de agarrar firme,
No mão direita, o fiador,
Leva a outra, sem temor,
Na orelha esquerda do guacho
E puxa firme, pra baixo,
Mas tendo sempre o cuidado
Pra que o bagual desconfiado
Não enxergue onde me acho!
Olha bem como se faz
Vai a carona primeiro,
Pois nem precisa bacheiro
Nessa primeira encilhada.
Lombilho, cincha apertada
Bem sobre o osso do peito.
Rabicho, pra agarrar jeito,
Pelegos, cinchão, mais nada!
Dá um nó nas rédeas, parceiro,
Que a cousa fique parelha
E depois me deixa a orelha
E vai montando no más -
Aprende como se faz,
Pra que nada te aconteça,
Cuida do potro a cabeça
e atira o corpo pra trás!
Não te preocupa com cerca,
Que tu não anda sozinho,
Saio junto e amadrinho
Pra que não haja desconto.
Finca-lhe o mango, de pronto,
E as chilenas, mas cuidado
Não olha pra nenhum lado
Pra mode não ficar tonto!
E ao passear tuas chilenas
Das paletas à virilha,
Vendo as gramas da coxilha
Ora bem longe, ora perto,
Tu compreenderás, por certo,
Essa atração sem igual
Que exerce em nós um bagual
Berrando um cmapo aberto!
Quando os corcovos pararem
Deixa correr e golpeia,
Flocha o corpo e ladeia,
Puxando em cada costado
Que o potro que é bem golpeado
Ds queixos, não se retova,
E já na terceira sova,
Quando esbarra, está domado!
Essa é a primeira lição,
Mas não esquece parceiro,
Do que te diz um campeiro,
Que não foi arrocinado:
- Um flete só é bem domado
Quando é manso de garupa
Pra poder levar num upa
A china do nosso agrado.
jayme caetano braun - remorsos de castrador
Um pealo --- um tombo --- grunhidos
de impotente rebeldia,
o sangue da cirurgia
No laço e no maneador.
Nada pra tapear a dor
do potro que --- sem saber,
perdeu a razão de ser
na faca do castrador.
Há um bárbara eficiência
nessa rude medicina,
a faca é limpa na crina
que alvoroçada revoa,
pouco interessa que doa,
a dor faz parte da vida.
Há de sarar em seguida,
desde guri tem mão boa.
Aprendeu --- nem sabe como,
a estancar uma sangria.
Sem noções de anatomia
é um cirurgião instintivo
que --- por vezes --- pensativo,
afundou na realidade
da crua barbaridade
desse ritual primitivo.
Já faz tempo --- muito tempo,
que um dia --- na falta doutro,
castrou seu primeiro potro,
um zaino negro tapado.
Que pena vê-lo castrado,
o entreperna coloreando
e os olhos recriminando,
num protesto amargurado.
Depois do zaino --- um tordilho,
depois --- baios e gateados,
um por um sacrificados
pela faca carneadeira
e o rude altar da mangueira
a pedir mais sacrifícios
dos bravos fletes patrícios,
titãs de campo e fronteira.
Por muitos e muitos anos
andou nos galpões do pampa,
castrando pingos de estampa
com renomada experiência,
cavalos reis de querência,
parelheiros afamados,
pela faca condenados
a morrer sem descendência.
Às vezes, durante a noite,
um pesadelo o volteia
e o remorso paleteia.
Castrador!... que judiaria!
E quando sem serventia
por aí deixar semente
no mundo onde há tanta gente
pedindo essa cirurgia.
E ali está --- defronte ao rancho,
pastando o mouro do arreio,
pingo de campo e rodeio
que castrou --- quando potrilho.
O mouro --- mesmo que filho
do xirú velho campeiro,
o último companheiro
do seu viver andarilho.
Na primavera --- outro dia,
um potranca lazona,
linda como temporona,
vestida em pelagem de ouro,
veio se esfregar no mouro,
mordiscando pelo e crina,
mais amorosa que china
num princípio de namoro!
E o mouro? --- pobre do mouro!
Não pode ter namorada.
Veio, direto à ramada,
numa agonia sem fim,
olhando pro dono, assim,
num bárbaro desespero,
como dizendo: parceiro,
vê o que fizeste de mim!!
jayme caetano braun - hora da sesta
O sol parece uma brasa
na cinza do firmamento.
Sobre o campo sonolento
ninguém está de vigília,
na lagoa - uma novilha,
bebe - de ventas franzidas
e duas graças perdidas
sentam na grama tordilha.
No galpão - tudo é silêncio,
e a cachorrada cochila
e a peonada se perfila,
estirada nos arreios,
só se escutam os floreios
da mamangava lubana
fazendo zoada, importuna,
nos buracos dos esteios.
Rompe o silêncio da seta
na guajuvira da frente
o tá-tá-tá impertinente
do bico dum pica-pau.
No galpão - um índio mau
quase enleia na açoiteira
a naniquinha poedeira
que vem botar no jirau.
Mas a soneira é mais forte
do que os gritos da galinha
e até as chinas da cozinha
cochicham meio em segredo,
Não há rumor no arvoredo,
nos bretes e nas mangueiras,
dormem as velhas figueiras
só quem não dorme é o piazedo.
É hora de caçar lagartos
e peleguear camoatim,
hora das artes sim fim
que o grande faz que ignora
e quanto guri de fora
criado no desamor,
numa infância de rigor
só foi guri nessa hora.
Hora de sesta - Saudades,
de juventude e de infância,
Hoje - ao te ver à distância,
quando a vida já raleia,
qual um sol bruxoleia
num canhadão se perdendo,
hoje - afinal - eu compreendo
por que guri não sesteia!
jayme caetano braun - mangueira de pedra
Velha mangueira crioula,
curral de pedra empilhada
que até o pastor da manada
bombeia com desconfiança,
ficaste como lembrança
da infância desta querência
guardando a mesma inocência
dos brinquedos de criança!
Dizem que foi o jesuíta
que te ergueu nas solidões,
da fronteira, das missões
do litoral e da serra
para que fosses a encerra
das primitivas tambeiras
e das éguas caborteiras
mais livres que a própria terra!
E te plantaram no campo,
com metro e meia de altura,
meia braça de largura, redonda ou de cantoneiras;
quatro varas nas porteiras roliças e descascadas
como lanças encravadas no buraco das fronteiras.
E , alí , no aberto, aprumada, remendo na cesmaria
te irmanaste com serventia ao laço e à boleadeira
qual outra nota campeira da nossa Sociologia
prenuciando a trilogia: rampão, rodeio e mangueira.
Depois, ao berrar do gado e ao relinchar da tropilha
viste surgir na cochilha um casarão empedrado
e o vulto desempenado , de rampão de rente aberta
com santa fé na coberta para um bugre empenachado.
Era o galpão do Rio Grande, era a estância que surgia
vertente da economia do Brasil Meridional
com um abraço cordial aberto na natureza
exprimindo a singeleza do velho pago natal.
E se galpão foi o templo da xucra democracia
tu foste a arena bravia onde gladiadores novos
perpetuaram corcovos uma epopéia sem fim
pra que teu rude clarim fosse ouvido noutros povos.
E na estranha sinfonia
de Corcom e de Marquascaço
de perra de tiro e de laços
nas monarcas dos galpões
nas tomas demarcações
junto ao fogão da amizade
tu foste o traço da igualdade
entre endierras e os patrões
e tivestes os teus verões.
Velha mangueira retaca
desde o que há de botar vaca,
artes do poema campeiro
até o chiru pataqueiro
que, para enlevo das chinas
fazia rédea das crinas
do potro mais caboiteiro.
O tempo foi se passando, modoiicou-se a querência
mas tu não perdeste a essência
pois mesmo de varejão e até mesmo de listão
com tronco, seringa e brefe
o teu vulto ainda reflete a infância do nosso rincão.
Aos próprios irracionais emprestas calor e afeto
pois mesmo aberta e sem teto és vivenda hospitaleira
e a vaca que foi campeira fica por ti enfeitiçada
passa o dia na invernada e vem dormir na mangueira.
Ao evocar-te,Mangueira, volto à piazinho pequeno,
pés molhados de sereno e ,às vezes, blusa de chiado
campiando vacas estraviadas choramingando de nojo
pra depois , beber a bojo, com gosto de madrugada.
Por isso , não admira Mangueira da minha infância
a este pobre pia de estância o que tu significas
Como tu, sequei meu pranto mas continuo aporriado
até ser emangueirado na terra do campo santo.
jayme caetano braun - amargo
Velha infusão gauchesca
De topete levantado
O porongo requeimado
Que te serve de vazilha
Tem o feitio da coxilha
Por onde o guasca domina,
E esse gosto de resina
Que não é amargo nem doce
É o beijo que desgarrou-se
Dos lábios de alguma china!
A velha bomba prateada
Que atrás do cerro desponta
Como uma lança de ponta
Encravada no repecho
Assim jogada ao desleixo
Até parece que espera
O retorno de algum cuera
Esparramado do bando
Que decerto anda peleando
Nalgum rincão de tapera!
Velho mate-chimarrão
As vezes quando te chupo
Eu sinto que me engarupo
Bem sobre a anca da história,
E repassando a memória
Vejo tropilhas de um pêlo
Selvagens em atropelo
Entreverados na orgia
Dos passes de bruxaria
Quando o feiticeiro inculto
Rezava o primeiro culto
Da pampeana liturgia!
Nessa lagoa parada
Cheia de paus e de espuma
Vão cruzando uma, por uma,
Antepassadas visões
Fandangos e marcações
Entreveros e bochinchos
Clarinadas e relinchos
Por descampados e grotas,
E quando tu te alvorotas
No teu ronco anunciador
Escuto ao longe o rumor
De uma cordeona floreando
E o vento norte assobiando
Nos flecos do tirador!
Sangue verde do meu pago
Quando o teu gosto me invade
Eu sinto necessidade
De ver céu e campo aberto
É algum mistério por certo
Que arrebentando maneias
Te faz corcovear nas veias
Como se o sangue encarnado
Verde tivesse voltado
Do curador das peleias!
Gaudéria essência charrua
Do Rio Grande primitivo
Chupo mais um, pra o estrivo
E campo a fora me largo,
Levando o teu gosto amargo
Gravado em todo o meu ser,
E um dia quando morrer,
Deus me conceda esta graça
De expirar entre a fumaça
Do meu chimarrão querido
Porque então irei ungido
Com água benta da raça!!!
jayme caetano braun - arroz de carreteiro
Nobre cardápio crioulo das primitivas jornadas,
Nascido nas carreteadas do Rio Grande abarbarado,
Por certo nisso inspirado, o xiru velho campeiro
Te batizou de "Carreteiro", meu velho arroz com guisado.
Não tem mistério o feitio dessa iguaria bagual,
É xarque - arroz - graxa - sal
É água pura em quantidade.
Meta fogo de verdade na panela cascurrenta.
Alho - cebola ou pimenta, isso conforme a vontade.
Não tem luxo - é tudo simples, pra fazer um carreiteiro.
Se fica algum "marinheiro" de vereda vem à tona.
Bote - se houver - manjerona, que dá um gostito melhor
Tapiando o amargo do suor que -
às vezes, vem da carona.
Pois em cima desse traste de uso tão abarbarado,
É onde se corta o guisado ligeirito - com destreza.
Prato rude - com certeza,
mas quando ferve em voz rouca
Deixa com água na boca a mais dengosa princesa.
Ah! Que saudades eu tenho
dos tempos em que tropeava
Quando de volta me apeava
num fogão rumbeando o cheiro
E por ali - tarimbeiro, cansado de bater casco,
Me esquecia do churrasco saboreando um carreteiro.
Em quanto pouso cheguei de pingo pelo cabresto,
Na falta de outro pretexto indagando algum atalho,
Mas sempre ao ver o borralho onde a panela fervia
Eu cá comigo dizia: chegou de passar trabalho.
Por isso - meu prato xucro, eu me paro acabrunhado
Ao te ver falsificado na cozinha do povoeiro
Desvirtuado por dinheiro à tradição gauchesca,
Guisado de carne fresca, não é arroz de carreteiro.
Hoje te matam à Mingua, em palácio e restaurante
Mas não há quem te suplante,
nem que o mundo se derreta,
Se és feito em panela preta, servido em prato de lata
Bombeando a lua de prata sob a quincha da carreta!
Por isso, quando eu chegar,
nalgum fogão do além-vida,
Se lá não houver comida já pedi a Deus por consolo,
Que junto ao fogão crioulo,
Quando for escurecendo, meu mate -amargo sorvendo,
A cavalo nalgum tronco, escute, ao menos, o ronco
De um "Carreteiro" fervendo.
jayme caetano braun - faca coqueiro
Cabo de madeira branca
E a folha de palmo e meio,
Esta faca que palmeio,
Sovando uma palha "buena",
Larga, assim, como novena
Nas festanças do Divino,
Foi presente do Galdino
Filho da Dona Pequena!
Na prancha meio azulada
Deste regalo campeiro,
Está gravado um coqueiro
Assim como um distintivo
Que me faz lembrar, altivo,
O charrua melenudo,
Bombeando longe, sisudo,
O velho solo nativo!
É nesse ferro crioulo
Que o meu fôlego embacia,
A cancha reta bravia
Por onde o fumo se espalha,
Com ele eu ajeito a palha,
Lonqueio, e aparo crina,
E a barba, p'ra ver a china
Quando não tenho navalha!
Quando corto num churrasco
Deixo branqueando o espeto,
E se na encrenca me meto
Não sobra garrão inteiro,
Pois este ferro campeiro
De ponta, como de prancha
Tem mania de abrir cancha
No costilhar do parceiro!
Por isso é que ao te palmear,
Sovando a palha do milho
Eu sinto, ó rude utensilio,
Que muito primeiro que eu
O guasca já te benzeu
Quando num berro de touro,
Junto ao "bendito" de couro
Nalgum rival te embebeu!
E ao te arrancar da bainha
De ponteira reforçada,
Evoco a rudez passada
Do teu áspero trajeto
Quando o xiru analfabeto
Contigo de companheira
Nas andanças da fronteira
Lonqueava o nosso dialeto!
Traste mil vezes relíquia
Por ser presente de amigo;
Hei de levar-te comigo
Sempre ao alcançe do braço
E acolherar no teu aço
O Presente e o Passado
Até que pranche enredado
Por algum "seio de laço"!
E fica certo, Galdino,
Ao te agradecer de novo,
Que no singelo retovo
Do meu gauderiar sem norte,
Esta faca, enquanto corte,
Até os últimos momentos,
Há de estar lonqueando os tentos
Da nossa amizade forte!
jayme caetano braun - galpão nativo
Meu velho galpão de estância
Da pampa verde-amarela
Que ficou de sentinela
Da história de nossa infância
Ã?s um marco na distância
Da velha capitania
Porque foste a sacristia
Do batismo do gaúcho
Quando moldou-se o debucho
Da pátria que amanhecia
Quinchado de santa fé
Oito esteios, pau a pique
Até parece um cacique
Todo emprumado de pé
O legendário sepé
Legítimo rei no trono
Que desde o primeiro entono
Trazia a pátria nos tentos
Anunciando aos quatro ventos
Que esta pátria tinha dono
Velho bivaque nativo
Encravado na cochilha
Palanque de curunilha
Do rio grande primitivo
Altar do fogo votivo
Que um dia o guasca acendeu
E aceso permaneceu
Bordado de picumãs
Anunciando aos amanhãs
Que o gaúcho não morreu
Não existe nada igual
Em qualquer parte do mundo
Como o vínculo profundo
Do galpão tradicional
Que esse fogão ancestral
Que acalenta e arrebata
Nesta velha casamata
Onde o guasca viu a luz
Galpão que a história traduz
Como oficina de pátria
Foi aqui que se fundiu
Aqueles velhos modelos
Que serviram de sinuelos
Da pátria que constituíram
Da pátria que construíram
Que a isso se propuseram
E nunca se detiveram
Porque nunca se detinham
Pra perguntar de onde vinham
Nem tampouco quantos eram
Foi aqui que descansaram
Depois das lides guerreiras
Os centauros das fronteiras
Que irmanados chimarrearam
E foi daqui que marcharam
Os andejos e os gaudérios
Negros e mulatos sérios
E tapejaras errantes
Gaúchos e bandeirantes
Rasgadores de hemisfério
O grande poeta balbino
Marque da rocha escreveu
Que o riograndense cresceu
Dono do próprio destino
Peleando desde menino
Criado longe do pai
E é ele que um dia vai
De boleadeira e de vincha
E trás o brasil na cincha
Pras barrancas do uruguai
Esse é o galpão que cultuamos
Esse é o galpão que queremos
Esse é o galpão que erguemos
E o galpão que conservamos
Como dizia rui ramos
Velho tribuno imponente
Um pedaço de presente
E um pedaço de passado
E futuro enraizado
No subsolo da gente
Essa legenda, essa história
Essa história, essa legenda
Desta rústica vivenda
Da luta demarcatória
Da luta emancipatória
Da velha pátria comum
Não há preconceito algum
No velho galpão campeiro
Ao pé de cujo braseiro
Sempre há lugar pra mais um
Tribunal e refeitório
De maulas e milicianos
De charruas e milicianos
Sem pátria nem território
Hoje és, galpão, repertório
Daquelas charlas fraternas
E das lembranças eternas
Das saudades que ficaram
Dos centauros que matearam
Nos teus cepos de três pernas
Porém te resta o encargo
Velho galpão ancestral
Legendária catedral
De pátria e de pampa largo
No ritual de mate amargo
Ainda existe cevadura
Ã?s um templo na planura
De paz, amor e carinho
Pra iluminar o caminho
Da grande pátria futura
Mas se não houver campo aberto
Lá em cima quando eu me for
Um galpão acolhedor
De santa fé bem coberto
Um pingo pastando perto
Só de pensar me comovo
Eu juro pelo meu povo
Nem todo o céu me segura
Retorno a velha planura
Pra ser gaúcho de novo
jayme caetano braun - tio anastácio
Entre a ponte e o lageado,
na venda do bonifácio,
conheci o tio anastácio,
negro velho já tordilho;
diz que mui quebra em potrilho,
hoje pobre despilchado,
de tirador remendado
num petiço doradilho...
Quem visse o tio anastácio,
num bolincho de campanha,
golpeando um trago de canha,
oitavado no balcão,
tinha bem logo a impressão,
que aquele mulato sério
era o rio grande gaudério
fugindo da evolução!
A tropilha dos invernos
tinha lhe dado uma estafa,
e aquela meia garrafa,
dentro do cano da bota,
contava a história remota
do negro velho curtido
que os anos tinham vencido
sem diminuir na derrota.
Mulato criado guacho
nos tempos da escravatura,
aquela estranha figura
na vida passara tudo;
ginetaço macanudo,
já desde o primeiro berro
saia trançando ferro
no potro mais culmilhudo!
Carneava uma res, num upa,
com toda calma e perícia!
reservado e sem malícia,
negro de toda confiança,
bem quisto na vizzinhança,
dava gosto num rodeio,
de pingo alçado no freio
pealando de toda trança
Tinha cruzado as fronteiras
da argentina e do uruguai;
andara no paraguai,
peleando valentemente,
e voltara, humildemente,
como tantos índios tacos
que foram vingar nos chacos
a honra da nossa gente!
Caboclo de qualidade
que não corpeava uma ajuda
na encrenca mais peleaguda
sempre conservava o tino,
garrucha boca de sino
carregada com amor
e um facão mais cortador
do que aspa de boi brasino!
Porém depois que os janeiros
foram ficando a distância,
andou, de estância em estância,
e foi vivendo de changa:
repontando bois de canga,
castrndo com muita sorte,
e, em tempos de seca forte,
arrastando água da sanga...
Ficou sendo um desses índios
que se encontra nos galpões
e ao derredor dos fogões
fala aos moços, com paciência,
de que aprendeu na existência,
ao longo dos corredores,
alegria, dissabores,
curtido pela experiência!
Tio anasstácio pra qui;
tio anastácio pra lá...
mandado mesmo que piá
pôr aquela redondeza;
nos remendos da pobreza,
entrava e passava inverno,
como um tronco so no cerno,
pelegueando a natureza!
Por isso é que nos bolinchos
só se alegrava bebendo
como se cada remendo
da velha roupa gaudéria,
fosse uma sangria séria
por onde o sangue do pago
se esvaisse, trago a trago,
por ver tamanha miséria!
E até parece mentira
- negro velho de valor!
morreste no corredor
como matungo sem dono;
não tendo neste abandono,
ao menos um companheiro,
que te estendesse o baixeiro
para o derradeiro sono!
E agora que estas vivendo
na estância grande do céu
engraxando algum sovéu
prao patrão velho buenacho,
não te esquece aqui de baixo
onde alolargo ainda existe
muito xiru velho triste
como tu, criado guacho!
como tu, tio anastácio...
jayme caetano braun - última rinha
Calcei o frango Prateado
Que foi pinto em meu terreiro,
Pra soltar no rinhedeiro
Onde estava um Colorado.
Havia povo amontoado
De pé, sentado e de joelho.
O jogo muito parelho
De mansito começou,
Até que um pardo gritou:
Cem mil no galo vermelho!
Era um galo da Argentina,
Diz que campeão de torneio,
O meu era um frango feio,
Mas de pua muito fina,
Porém a voz repentina
Do alarife jogador
Trouxe como que um tremor
De surpresa e impaciência
Que fez vibrar a assistência
Ao derredor do tambor!
Foi como chuva no zinco,
E a cousa já pegou fogo
Começando a sair jogo
De até vinte mil por cinco,
Mas havia tal afinco
Que um dos lados se encolheu,
Houve até quem se benzeu,
Num gesto de carpeteiro,
Fazendo cruz no dinheiro
Jogando a favor do meu!
E me deixaram de lado,
Solito e sem parceria.
E eu joguei o que podia
Contra o galo Colorado.
Depois, soltei o Prateado
Que ciscando na serragem,
Bateu asas, de coragem,
E cantou com imponência
Como quem diz a assistência:
Não dou e nem peço vantagem!
Já na primeira topada,
Antes de trançarem ferro,
O meu frango deu um berro
Numa voz esganiçada,
Tinha uma vista arrancada
E o grito fora inconsciente,
Mesmo que um grito de gente
Que ele soltou sem sentir
Mas sem menção de fugir:
Oigalê, bicho valente!
Senti um bárbaro arrepio
Que me correu pela espinha
Mas, porém, seguiu a rinha
E o meu frango não fugiu,
Cambaleou mas não caiu
E se aprumou de vereda,
Enquanto que pela seda
Do pescoço levantado
Descia o sangue encarnado
Num brilho de labareda!
E voltando com furor.
Respondeu aço com aço,
Puaço atrás de puaço,
Que estremecia o tambor.
Era mesmo peliador
O tal galo Colorado,
Já nem falo do Prateado
Que bem de pé, como um potro,
Veio pra cima do outro
Mesmo que um tigre baleado!
E amigos, naquele instante
Me amaldiçoei em segredo
Das vezes que tive medo
De algo insignificante,
Ao ver ali, impressionante
Aquele galo ferido,
No próprio sangue esvaído,
Torto, quase cego até,
Disposto a morrer de pé
Pra não se dar por vencido!
Afogado na sangüeira
E abaixo de tempo feio,
Vi que não ia a careio
Assim, daquela maneira,
A cabeça uma peneira,
Do pescoço, já nem falo,
Eu sem poder ajudá-lo,
Ele peleando sozinho
E eu repetindo baixinho:
Vamos?! Coragem meu galo!
E o vermelho ia ponteando,
Mais brabo do que uma cobra
Que perna, tinha de sobra,
E raça, também sobrando,
E foi aí, senão quando,
Que o frango do meu terreiro,
Num tiro de desespero,
Mais certo que um balaço,
O desnucou de um puaço
No meio do rinhedeiro!
E ali está o galo Prateado
Cercado pelas galinhas.
Eu até deixei de rinhas
Talvez por penalizado,
Ou talvez espicaçado,
Que o remorso não perdoa,
Por que se a vida é tão boa,
É um banditismo da gente
Fazer um bicho valente
Matar ou morrer à-toa!
jayme caetano braun - bochincho
A um bochincho - certa feita,
Fui chegando - de curioso,
Que o vicio - é que nem sarnoso,
nunca pára - nem se ajeita.
Baile de gente direita
Vi, de pronto, que não era,
Na noite de primavera
Gaguejava a voz dum tango
E eu sou louco por fandango
Que nem pinto por quireral.
Atei meu zaino - longito,
Num galho de guamirim,
Desde guri fui assim,
Não brinco nem facilito.
Em bruxas não acredito
'Pero - que las, las hay',
Sou da costa do Uruguai,
Meu velho pago querido
E por andar desprevenido
Há tanto guri sem pai.
No rancho de santa-fé,
De pau-a-pique barreado,
Num trancão de convidado
Me entreverei no banzé.
Chinaredo à bola-pé,
No ambiente fumacento,
Um candieiro, bem no centro,
Num lusco-fusco de aurora,
Pra quem chegava de fora
Pouco enxergava ali dentro!
Dei de mão numa tiangaça
Que me cruzou no costado
E já sai entreverado
Entre a poeira e a fumaça,
Oigalé china lindaça,
Morena de toda a crina,
Dessas da venta brasina,
Com cheiro de lechiguana
Que quando ergue uma pestana
Até a noite se ilumina.
Misto de diaba e de santa,
Com ares de quem é dona
E um gosto de temporona
Que traz água na garganta.
Eu me grudei na percanta
O mesmo que um carrapato
E o gaiteiro era um mulato
Que até dormindo tocava
E a gaita choramingava
Como namoro de gato!
A gaita velha gemia,
Ás vezes quase parava,
De repente se acordava
E num vanerão se perdia
E eu - contra a pele macia
Daquele corpo moreno,
Sentia o mundo pequeno,
Bombeando cheio de enlevo
Dois olhos - flores de trevo
Com respingos de sereno!
Mas o que é bom se termina
- Cumpriu-se o velho ditado,
Eu que dançava, embalado,
Nos braços doces da china
Escutei - de relancina,
Uma espécie de relincho,
Era o dono do bochincho,
Meio oitavado num canto,
Que me olhava - com espanto,
Mais sério do que um capincho!
E foi ele que se veio,
Pois era dele a pinguancha,
Bufando e abrindo cancha
Como dono de rodeio.
Quis me partir pelo meio
Num talonaço de adaga
Que - se me pega - me estraga,
Chegou levantar um cisco,
Mas não é a toa - chomisco!
Que sou de São Luiz Gonzaga!
Meio na volta do braço
Consegui tirar o talho
E quase que me atrapalho
Porque havia pouco espaço,
Mas senti o calor do aço
E o calor do aço arde,
Me levantei - sem alarde,
Por causa do desaforo
E soltei meu marca touro
Num medonho buenas-tarde!
Tenho visto coisa feia,
Tenho visto judiaria,
Mas ainda hoje me arrepia
Lembrar aquela peleia,
Talvez quem ouça - não creia,
Mas vi brotar no pescoço,
Do índio do berro grosso
Como uma cinta vermelha
E desde o beiço até a orelha
Ficou relampeando o osso!
O índio era um índio touro,
Mas até touro se ajoelha,
Cortado do beiço a orelha
Amontoou-se como um couro
E aquilo foi um estouro,
Daqueles que dava medo,
Espantou-se o chinaredo
E amigos - foi uma zoada,
Parecia até uma eguada
Disparando num varzedo!
Não há quem pinte o retrato
Dum bochincho - quando estoura,
Tinidos de adaga - espora
E gritos de desacato.
Berros de quarenta e quatro
De cada canto da sala
E a velha gaita baguala
Num vanerão pacholento,
Fazendo acompanhamento
Do turumbamba de bala!
É china que se escabela,
Redemoinhando na porta
E chiru da guampa torta
Que vem direito à janela,
Gritando - de toda guela,
Num berreiro alucinante,
Índio que não se garante,
Vendo sangue - se apavora
E se manda - campo fora,
Levando tudo por diante!
Sou crente na divindade,
Morro quando Deus quiser,
Mas amigos - se eu disser,
Até periga a verdade,
Naquela barbaridade,
De chínaredo fugindo,
De grito e bala zunindo,
O gaiteiro - alheio a tudo,
Tocava um xote clinudo,
Já quase meio dormindo!
E a coisa ia indo assim,
Balanceei a situação,
- Já quase sem munição,
Todos atirando em mim.
Qual ia ser o meu fim,
Me dei conta - de repente,
Não vou ficar pra semente,
Mas gosto de andar no mundo,
Me esperavam na do fundo,
Saí na Porta da frente...
E dali ganhei o mato,
Abaixo de tiroteio
E inda escutava o floreio
Da cordeona do mulato
E, pra encurtar o relato,
Me bandeei pra o outro lado,
Cruzei o Uruguai, a nado,
Que o meu zaino era um capincho
E a história desse bochincho
Faz parte do meu passado!
E a china - essa pergunta me é feita
A cada vez que declamo
É uma coisa que reclamo
Porque não acho direita
Considero uma desfeita
Que compreender não consigo,
Eu, no medonho perigo
Duma situação brasina
Todos perguntam da china
E ninguém se importa comigo!
E a china - eu nunca mais vi
No meu gauderiar andejo,
Somente em sonhos a vejo
Em bárbaro frenesi.
Talvez ande - por aí,
No rodeio das alçadas,
Ou - talvez - nas madrugadas,
Seja uma estrela chirua
Dessas - que se banha nua
No espelho das aguadas!
jayme caetano braun - cemitério de campanha
Cemitério de campanha,
Rebanho negro de cruzes
Onde à noite estranhas luzes
Fogoneiam tristemente
Até o próprio gado sente
No teu mistério profundo
Que és um pedaço de mundo
Noutro mundo diferente
Pouso certo dos humanos
Fim de calvário terreno,
Onde o grande e o pequeno
Se irmanam num mundo só.
E onde os suspiros de dó
De nada significam
Porque em ti os viventes ficam
Diluídos no mesmo pó.
Até o ar que tu respiras
Morno, tristonho e pesado,
Tem um cheiro de passado
Que foi e não volta mais.
A tua voz, são os ais
Do vento choramingando
Eternamente rezando
Gauchescos funerais.
Coroas, tocos de velas
De pavios enegrecidos
Que em Terços mal concorridos
Foram-se queimando a meio
Cruzes de aspecto feio
De alguém que viveu penando
E depois de andar rolando
Retorna ao chão de onde veio.
Mas que importa a diferença
Entre uma cruz falquejada
E a tumba marmorizada
De quem viveu na opulência?
Que importa a cruz da indigência
A quem já não vive mais,
Se somos todos iguais
Depois da existência?
Que importa a coroa fina
E a vela de esparmacete?
Se entre os varais do teu brete
Nada mais tem importância?
Um patrão, um peão de estância
Um doutor, uma donzela?
Tudo, tudo se nivela
Pela insignificância.
Por isso quando me apeio
Num cemitério campeiro
Eu sempre rezo primeiro
Junto a cruz sem inscrição,
Pois na cruz feita a facão
Que terra a dentro se some
Vejo os gaúchos sem nome
Que domaram este Chão.
E compreendo, cemitério,
Que és a última parada
Na indevassável estrada
Que ao além mundo conduz
E aqueces na mesma luz
Aqueles que não tiveram
E aqueles que não quiseram
No seu jazigo uma Cruz.
E visito, de um por um,
No silêncio, triste e calmo,
Desde a cruz de meio palmo
Ao mais rico mausoléu,
Depois, botando o chapéu
Me afasto, pensando a esmo:
Será que alguém fará o mesmo
Quando eu for tropear no Céu???
jayme caetano braun - chimarrão do estrivo
Mate do estrivo bendito,
Amargo que a gente chupa,
Já de poncho na garupa
Para a tropeada do mundo,
Algum mistério profundo
Te revirou do avesso,
Porque és doce no começo
E tão amargo no fundo!
Quantas vezes te chupei
Junto ao cavalo encilhado,
Tendo a china no costado
Tristonha na despedida,
Sem pensar - velha bebida! -
Que ao te golpear sem rebuços,
Ia bebendo os soluços
Daquela prenda querida!
Velho mate carinhoso,
Encilhado de erva mansa,
Quando uma China te alcança,
Olhando quieta pra gente,
Deve pensar, certamente,
Que depois de um beijo longo,
O adeus é como o porongo
Que fica frio de repente!
Mil vezes te amanunciei,
No pingo meio oitavado,
Entre um pedido, um recado,
De uma mana ou de uma prenda...
Pois sempre alguém recomenda
Quando a gente é meio novo
Que não se meta em retovo
Junto aos gaudérios de venda!
E depois quando parti-me
Do Pago, campeando a sorte,
Eu te chupei, mate forte,
Bem junto do parapeito,
E fui saindo, sem jeito,
Dando rédeas ao gateado,
Mas te guardarei bem cevado
No porongo de meu peito!
Decerto é por isso mesmo
Que quando evoco a Querência
Eu te sinto, com violência,
Nas veias em atropelo,
E até me ouriça o cabelo.
Pois do meu ser primitivo,
Aquele mate do estrivo
Foi o último sinuelo!
E ao bom Deus que é rio-grandense
Sempre peço, enquanto vivo,
Um chimarrão para o estrivo
Quando chegar o meu fim.
E se Ele quiser assim,
Vá destacando uma china
Que lá na Estância Divina
Prepare o mate pra mim!
jayme caetano braun - chimarrão e poesia
O payador missioneiro
Sente o calor do braseiro
Batendo forte no rosto
E vai mastigando o gosto
Da velha infusão amarga,
Sentindo o peso da carga
Que algum ancestral comanda
Enquanto o mundo se agranda
E o coração se me alarga
Sempre a mesma liturgia
Do chimarrão do meu povo,
Há sempre um algo de novo
No clarear de um outro dia,
Parece que a geografia
Se transforma - de hora em hora
E o payador se apavora
Diante um mundo convulso
Sentindo o bárbaro impulso
De se mandar campo fora!
Muito antes da caverna
Eu penso - enquanto improviso,
Nos campos do paraíso
O patrão que nos governa,
Na sua sapiência eterna
E eterna sabedoria,
Deu o canto e a melodia
Para os pássaros e os ventos
Pra que fossem complementos
Do que chamamos poesia!
Por conseguinte - o Adão,
Já nasceu poeta inspirado,
Mesmo um tanto abarbarado
Por falta de erudição
E compôs um poema pagão
À sua rude maneira,
Para a sua companheira,
A mulher - poema beleza,
Inspirado - com certeza
Numa folha de parreira!
Os Menestréis - os Aedos,
Os Bardos - Os Rapsodos,
Poetas grandes - eles todos,
Manejando a voz e os dedos
Vão desvendando os segredos
Nas suas rudes andanças,
As violas em vez de lanças,
Harpas - flautas - bandolins,
Semeando pelos confins
As décimas e as romanzas!
Tanto os poetas orientais
Como os poetas do ocidente,
Cada qual uma vertente,
Todos eles mananciais,
Nos quatro pontos cardeais
Esparramando canções
E - no rastro das legiões
Do lusitano prefácio,
A última flor do lácio
Nos deu Luiz Vaz de Camões!
No Brasil continental
Chegaram as caravelas
E vieram junto com elas
As poesias - com Cabral,
Para um marco imemorial
Nestas florestas bravias
Perpetuando melodias
De imorredouro destaque:
Castro Alves e Bilac
E Antônio Gonçalves Dias!
Neste garrão de hemisfério
Quando a pátria amanhecia
Surgiu também a poesia
No costado do gaudério
Na pia do batistério
Das restingas e das flores
E a horda dos campeadores
Bárbara e analfabeta
Pariu o primeiro poeta
No canto dos payadores!
E foi ele - esse vaqueano
Do cenário primitivo,
Autor do poema nativo
Misto de pêlo e tutano,
De pampeiro - de minuano,
Repontando sonhos grandes;
Hidalgo - Ramiro - Hernández
El Viejo Pancho - Ascassubi
Mamando no mesmo ubre
Desde o Guaíba aos Andes!
Há uma grande variedade
De poetas no meu país,
Do mais variado matiz
Cheios de brasilidade,
De um Carlos Drummond de Andrade
Ao mais culto e ao mais fino,
Mas eu prefiro o Balbino,
Juca Ruivo e Aureliano,
Trançando de mano a mano
Com lonca de boi brasino
João Vargas - e o Vargas Neto
E o Amaro Juvenal,
Cada qual um manancial
Que ilustram qualquer dialeto,
Manuseando o alfabeto
No seu feitio mais austero,
Os discípulos de Homero
De alma grande e verso leve,
Desde sempre usando um "breve"
De ferrão de quero-quero!
Imagino enquanto escuto
Esse bárbaro lamento
Que a poesia é o som do vento
Que nunca pára um minuto,
Picumã vestiu de luto
A quincha do Santafé,
Mas nós sabemos porque é
Que o vento xucro não pára:
São suspiros da Jussara
Chamando o índio Sepé!
Cds jayme caetano braun á Venda